Profetizada pelo apóstolo João, Apocalipse 13 defende que o fim do mundo será anunciado por duas bestas: uma vinda da terra e, outra, do mar
Logo após o anúncio de que o americano Robert Francis Prevost é o novo papa, adotando o nome de Leão XIV, começaram a surgir nas redes sociais teorias que associam sua eleição ao fim dos tempos descrito no Apocalipse, último livro da Bíblia.
As postagens fazem referência ao capítulo 13 do Apocalipse, que descreve duas “bestas” simbólicas: uma que emerge do mar, representando o poder político, e outra que surge da terra, simbolizando o poder religioso.
O fato de o novo líder da Igreja Católica ser nascido nos Estados Unidos — país frequentemente apontado como o centro do poder global — tem alimentado interpretações conspiratórias de que essa profecia estaria se cumprindo.
Alguns usuários destacaram ainda a coincidência entre o nome escolhido pelo papa — Leão, animal mencionado na descrição da segunda besta — e o número romano XIV, que sucede o 13, número do capítulo bíblico. "Profecia de Apocalipse 13 se cumprindo", escreveu um usuário no X (antigo Twitter).
Mas segundo o pastor Kenner Terra, da Igreja Batista Água Branca (IBAB), doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e professor na Faculdade Instituto Rio de Janeiro (Fiurj), essa leitura é completamente infundada.
Autor do livro 'O Apocalipse de João: caos, cosmos e o contradiscurso apocalíptico', ele explica que essas teorias distorcem o conteúdo bíblico com associações aleatórias.
“Essas conexões conspiratórias funcionam assim: pegam um nome, um número, uma figura de autoridade e amarram tudo numa narrativa que parece óbvia, mas é sem sentido. São ideias perigosas, alienadoras”, afirma o pastor em entrevista ao g1.
O capítulo 13 do Apocalipse, escrito por João no século 1, usa linguagem simbólica para criticar o poder imperial de Roma. No versículo 1, lê-se:
Vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia."
Já no versículo 11: "E vi subir da terra outra besta... e falava como dragão. E exercia todo o poder da primeira besta na sua presença."
Para o pastor Kenner Terra, a intenção de João era denunciar, de forma cifrada, a figura do imperador Nero César, usando imagens do imaginário apocalíptico de sua época. “João utiliza símbolos compreensíveis para seu público, uma linguagem codificada para criticar o domínio de Roma sem se colocar em risco direto”, explica.
O versículo final do capítulo — um dos mais citados na cultura pop, inclusive em músicas como The Number of the Beast, da banda Iron Maiden — traz outro elemento usado nas teorias conspiratórias:
Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta: porque é número de homem, e o seu número é 666."
Kenner Terra lembra que essa cifra também se refere ao imperador romano, a partir de cálculos baseados na numerologia hebraica (conhecida como guematria), que associava letras a números.
“Já no primeiro século, o público-alvo entendia a quem João se referia. Mas ao longo da história, o número 666 foi reinterpretado de diversas formas — inclusive como ferramenta de ataque ao papado durante a Reforma Protestante”, explica.
O especialista afirma ao g1 que, historicamente, não é a primeira vez que um papa é rotulado como anticristo. “Desde a Reforma, o papado já foi associado ao mal em diferentes contextos. Essa repetição mostra mais sobre os medos e disputas contemporâneas do que sobre qualquer profecia bíblica real.”
Para ele, o atual surto de interpretações alarmistas é mais uma manifestação do modo como as redes sociais amplificam teorias da conspiração. “É fundamental entender o contexto histórico e literário dos textos bíblicos antes de usá-los para atacar figuras públicas”, alerta.