Filha de Eunice e Rubens Paiva, Eliana tinha apenas 15 anos quando foi levada ao DOI-Codi: 'Nesse momento me veio a sensação de que meu pai estava morto'
Publicado em 05/02/2025, às 18h00 - Atualizado em 07/02/2025, às 18h42
Representante brasileiro no Oscar de 2025, Ainda Estou Aqui segue como um grande sucesso de público e crítica. Dirigido por Walter Salles, o filme narra a história de Eunice Paiva, matriarca da família Paiva, que lutou por justiça após a prisão e desaparecimento de seu marido, o deputado cassado Rubens Paiva.
No início da década de 1970, o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. No Rio de Janeiro, a família Paiva - Rubens, Eunice e seus cinco filhos - vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece", destaca a sinopse do filme.
Em 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva foi detido em sua casa por agentes do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA). O seu último paradeiro conhecido foi o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército, na Tijuca.
Horas depois da prisão de Rubens, Eunice e sua filha, Eliana, que tinha apenas 15 anos na época, também foram detidas e levadas ao mesmo local que Rubens Paiva. Eunice ficou presa por 12 dias e Eliana por 24 horas.
Os relatos deste dia foram relembrados por Eliana em 2014, quando falou pela primeira vez sobre o assunto em entrevista ao jornal O Globo. Relembre!
Rubens Paiva foi levado por militares enquanto estava em sua casa no Leblon, no Rio de Janeiro, no feriado de 20 de janeiro de 1971. "Meu pai era uma figura muito alegre, muito viva, muito feliz", disse Eliana ao veículo naquele ano.
Engenheiro e deputado federal, Rubens Paiva também é lembrado por seu discurso histórico na Rádio Nacional em 1º de abril de 1964, quando incitou a população a resistir pacificamente ao golpe. Por conta disso, foi cassado e teve que se exilar no exterior.
O patriarca da Família Paiva também integrou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), responsável por investigar o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) — organização patrocinada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos; que havia financiado políticos e jornalistas envolvidos na campanha contra João Goulart.
"Ele tinha tido uma atuação na época do processo contra o Ibad", conta. "Foi uma coisa séria, denunciar o Ibad… Aquilo era uma coisa muito séria dentro do governo militar, que provava uma série de verbas mal utilizadas por gente que depois assumiu o regime".
No dia da prisão de seu pai, Eliana aponta que havia conversado com ele pela última vez antes de ir à praia com um grupo de amigos. "Eu tinha uma turma de praia, como todo mundo tinha na adolescência. Eu tinha 14, 15 anos de idade. Eu me lembro de estar saindo correndo e ele me disse: 'ué, você não vai me dar um beijo?'. Eu disse: 'vou, claro'."
Eliana recorda que deixou sua casa por volta das 10 ou 11 horas da manhã e que só retornou por volta de duas horas da tarde. "Quando voltei uma, duas horas da tarde, eu entro em casa e mamãe [Eunice Paiva] — até hoje tenho isso na memória — estava com o olho muito arregalado, uma coisa que eu nunca tinha visto nela. Ela estava muito arregalada, falando muito baixo, muito contida. Perguntei: O que aconteceu? Ela: 'Teu pai foi preso'."
Eliana, então, conseguiu um jeito de driblar os militares à paisana que estavam ao redor de sua residência e foi até à casa de um amigo dar um telefonema para avisar seu tio sobre o que havia acontecido. "Era o cunhado do meu pai, casado com uma irmã da minha mãe, Cássio Mesquita Barros, que é um advogado, ainda é advogado até hoje."
Quando retornou, Eliana foi abordada pelos agentes. "Um deles, o mais fortão, estava com um cabo elétrico na mão e perguntou: 'o que você foi fazer na rua?'... 'Você foi avisar às pessoas que seu pai foi preso'", indagou.
Naquele momento, ela percebeu que o telefone de sua casa havia sido grampeado, visto que seu tio, ingenuamente, havia ligado para sua mãe para saber mais detalhes sobre o que acontecera com Rubens Paiva.
Entre os dias 20 e 21, Eliana conta que teve que ficar em casa, como uma espécie de prisão domiciliar. "Ninguém mais entrava, ninguém mais saía", relatou ao O Globo. Dois amigos dela, inclusive, que haviam ido até sua casa procurá-la, acabaram sendo presos e levados para interrogatório.
O Ronaldo Pacheco, que me acolheu na casa dele, também foi levado. Tinha minha idade, tinha 15 anos. Parece que foi bastante maltratado, foi muito torturado, aos 15 anos."
No dia 21, Eliana Paiva conta que foi acordada por Eunice: "Se veste, que a gente vai ter que dar depoimento". Por volta das 11 horas da manhã, as duas foram levadas de Fusca até o DOI-Codi.
"Nessa ida à Tijuca, eles pararam em frente ao Maracanã e nos encapuzaram. Um capuz que terminava na altura do peito. A gente estava sentada no banco de trás desse fusca, um fusca azul."
Chegando ao DOI-Codi na Barra da Tijuca, Eunice e Eliana foram separadas; as duas só voltariam a se encontrar uma vez durante o período que ficaram detidas no local. "Eu vi só uma vez a minha mãe durante as 24 horas em que eu fiquei presa. A gente foi colocada numa espécie de corredor. Esse corredor, aos poucos, foi se tornando um corredor polonês".
Então, passavam os guardinhas e, ou davam um choque na minha cabeça, e me chamavam de comunista, ou tentavam abusar de mim. E eu não sabia onde estava a minha mãe. Mas o mais terrível desse momento foi quando comecei a ouvir as torturas horríveis que aconteceram nesse país. As pessoas pediam pelo amor de Deus que parassem de bater", contextualiza.
Ainda encapuzada, Eliana diz que só ouvia os gritos que ecoavam pelo local, como "Pelo amor de Deus parem com isso" ou "Pelo amor de Deus, não façam mais isso". Os berros eram intermitentes.
No entanto, essa não foi a coisa que mais chocou a filha de Eunice e Paiva. "A coisa que me deixou mais anestesiada foi a violência que vi à frente. Haviam pessoas sentadas no chão, acho que meninos universitários. Toda vez que passava um militar, dava um chute neles. Eu não sei em que região, mas davam um belo de um chute, ao ponto de eles berrarem ou tentarem se controlar, mas berravam. E eu comecei a ver esse castigo do meu lado, quer dizer, já não era um castigo na sala ao lado."
Eliana foi levada para interrogatório, por um sujeito conhecido como 'O Cirurgião', que foi bastante cruel. "Nesse momento, tinha pau de arara ao lado, sangue no chão. Eu não conseguia saber, era uma sala pequena, fechada, sem janelas. Havia uma mesa entre mim e ele".
Eliana foi questionada sobre todos os amigos e relações que seu pai tinha, a quem os agentes apontavam ser terroristas. "Você sabe que seu pai era comunista?", indagou um militar. "'Não sei se meu pai é comunista, mas ele devia conhecer alguma coisa de Marx'. Eu me lembro que o interrogatório foi nesse nível."
Depois, Eliana conta que os militares tinham em sua mesa um trabalho de História que ela havia feito na escola, o Colégio Notre Dame de Sion, sobre a revolução Tcheca. "Eles pegaram esse trabalho e falaram assim: 'Então você também é comunista'. Primeiro, perguntaram se meu pai era comunista. Puseram o trabalho na minha frente e falaram isso."
"Não havia segredo em relação à Primavera de Praga. Eu olhei para o interrogador. Lembro-me que eu fiquei realmente muito brava, muito humilhada, foi uma série de sensações que, enquanto eu estava me anestesiando naquele corredor, nesse momento a coisa me atingiu pessoalmente, porque estava mexendo num trabalho que tinha feito."
Eliana conta que ao mostrarem a atividade, ela sentiu um ar de ameaça em relação à sua professora, "ao conhecimento que eu estava adquirindo e às coisas que eu estava aprendendo. Foi a primeira vez que comecei a ver o que era a realidade da prisão, da tortura, enfim, do cerceamento de expressão".
Como resposta, ela se calou. "Fiquei preocupada e me calei. Quer dizer, não falei mais nada, resolvi não falar mais nada, porque não sabia quais seriam as consequências."
Logo em seguida, 'O Cirurgião' foi chamado em outra sala e Eliana voltou a ser encapuzada. "Depois houve um segundo interrogatório, e comecei a chorar. Começaram a escorrer lágrimas. Ficou violento demais. Ou porque eu já tinha entendido onde estava, não sei".
Foi antes deste segundo interrogatório, aliás, que ele se encontrou com Eunice. "Então cruzei com a minha mãe encapuzada, e ela encapuzada, na porta dessa sala, me disse: 'Filhinha, tudo bem?'. 'Tudo bem, mamãe, e você?'. 'Tudo bem, filhinha…'. E aí ela saiu quando entrei. Eu não vi mamãe completamente, porque estava encapuzada...E não sei se ela me viu. Ela não chegou nem a me tocar. Foi uma voz de mãe…'filhinha...tudo bem?' Uma voz muito doce", recorda.
Durante o segundo interrogatório, Eliana Paiva disse que o segundo agente era uma pessoa mais tranquila e madura, de cabelos brancos. Mas aponta que não sabia quem era, visto que os militares não possuíam identificação.
A filha de Eunice e Rubens conta que o segundo interrogatório foi mais ameno e que ela contou o que os militares queriam saber. "Voltei para o corredor. Ele tirou o capuz, e me colocou uma venda. Foi a maior felicidade do mundo, porque eu pude respirar melhor e pude entender melhor onde eu estava".
E já pude ter uma sensação de que a vida tinha voltado um pouco. Eu não estava numa situação de morte. Se você anda com aquele capuz, anda com uma sensação de morte. Aí, de novo nesse corredor, até às seis horas da tarde, mais ou menos, começaram os berros de novo. Pela terceira vez e com bastante violência. Cada vez mais violento."
Após chorar copiosamente, Eliana foi levada para uma cela onde foi mantida sozinha, onde ficou das seis horas da manhã até o dia seguinte, segundo seus relatos. "Não fui mais interrogada", disse ao O Globo.
"Não sei se dormi. Não me lembro. Sei que de amanhã acordo também com uma coisa muito simbólica, porque começaram a cantar aquela música do Roberto Carlos: 'Jesus Cristo, eu estou aqui'. Começaram a acordar todo mundo com isso. O quartel acordou com essa música. Aquele meu setor acordou com essa música. Loucura, total e absoluta."
Buscando informações com os guardas sobre seus pais, Eliana recorda de ter recebido notícias sobre Eunice e Rubens. "Me disse que mamãe estava estendida no colchão. Ela não se mexia. Isso, a minha mãe. Minha mãe, quando está em perigo ou quando tem alguém da família em perigo, não se mexe. Eu falei: 'ela não se mexe?'. Ele: 'Ela não se mexe, tá muito estranha a sua mãe, tá completamente imóvel'."
"'Bom, você sabe do meu pai?'. 'Ah, teu pai não sei, não'. 'Mas você tem ideia de onde ele esteve?'. 'Olha, vou tentar perguntar, mas acho que ele já foi'. Eu falei: 'Ele já foi'."
Nesse momento me veio a sensação de que meu pai estava morto. Quer dizer: a sensação de que ele não estava mais com vida. As pessoas já me perguntaram. Parece uma coisa meio esotérica, meio mística. A sensação que eu tenho é que não sentia mais a vida dele. E que a partir daí minha grande preocupação passou a ser minha mãe", conta.
Eliana acabou sendo liberada poucas horas depois, saindo do DOI-Codi apenas com a bolsa de sua mãe, sendo levada por dois agentes em um carro até a região da Tijuca. Então ela ligou e pediu ajuda para um dos amigos de seu pai.
"Meus avós maternos estavam em casa. Eu não estava entendendo absolutamente nada, mas alguém devia ter avisado, porque eu estava com dois irmãos menores dentro de casa. O Marcelo [Rubens Paiva] tinha 10 anos e a Beatriz tinha 9 anos, a Babiu. E estava minha avó materna, que é deliciosa, e meu avô também estava lá. Fui para casa e entrei, assustada, com aquela bolsa da mamãe agarrada".
Eliana conta que não possui lembranças sobre as conversas que teve com os irmão nos dias seguintes, por algum tipo de bloqueio mental.
Eunice Paiva ficou 12 dias presa no DOI-Codi, mas só ficou sabendo da liberdade de sua filha muitas horas depois da libertação de Eliana. Já Rubens Paiva jamais teve seu corpo encontrado. Sua família só recebeu seu atestado de óbito em 1996.
Quase duas décadas depois, em 2014, um relatório divulgado pela Comissão da Verdade, estabelecido na gestão de Dilma Rousseff (também presa e torturada pela Ditadura) esclareceu que após Rubens Paiva ser torturado do DOI, seu corpo foi enterrado e desenterrado algumas vezes; visto que os militares temiam que seus restos fossem encontrados. Como solução, ele foi arremessado ao mar dois anos depois de sua morte.