Condenações são raras e processos se arrastam, enquanto vítimas tentam transformar o trauma em luta por memória e reparação
Zehra Murguz levou anos até conseguir relatar os horrores que ela e outras mulheres muçulmanas viveram nos chamados “campos de estupro” mantidos por forças sérvias durante a Guerra da Bósnia.
Uma das imagens que mais a marcou foi a de uma menina de 12 anos, segurando uma boneca, sendo arrastada para um desses locais. “Falo em nome de todas as outras, daquela menina de 12 anos que nunca falará... que nunca foi encontrada”, afirmou Murguz à AFP.
O pesadelo começou no verão de 1992, quando a cidade montanhosa de Foca foi tomada pelas forças sérvias. Murguz foi levada ao ginásio Partizan, um dos vários locais usados para manter mulheres e meninas muçulmanas em cativeiro, onde foram submetidas a estupros coletivos, escravidão sexual e assassinatos.
Estima-se que ao menos 20 mil mulheres tenham sofrido violência sexual durante o conflito, a maioria bósnias muçulmanas, mas também sérvias e croatas.
Em 2001, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia reconheceu, pela primeira vez na Europa, o estupro como crime contra a humanidade, ao condenar três oficiais sérvio-bósnios por crimes cometidos em Foca.
Ainda assim, a luta por justiça se arrasta: muitos sobreviventes deram seus depoimentos, mas milhares continuam em silêncio, ainda marcados pelo trauma.
Murguz, hoje com 61 anos, só denunciou seu vizinho — “o criminoso”, como o chama — em 2011, após retornar à Bósnia depois de anos vivendo no exterior. Ele seguia morando livremente em Foca.
Preso em 2012, foi condenado em um tribunal local. “Se eu não falar, será como se o crime nunca tivesse acontecido”, disse ela à agência, lembrando que o julgamento foi como reviver a “agonia” de 1992. A condenação, no entanto, foi um alívio: “Ele foi marcado com seu verdadeiro nome: criminoso de guerra”.
Em Sarajevo, Murguz costura ao lado de outras sobreviventes em um ateliê administrado pelo grupo Vítimas da Guerra de Foca 1992-1995, que oferece apoio e terapia coletiva. A presidente da associação, Midheta Kaloper, também carrega suas feridas.
Vítima de um crime “indescritível” em Gorazde, ela ainda espera a condenação de seu agressor, que vive na Sérvia. Mas o processo anda a passos lentos.
Até agora, apenas 18 sentenças foram proferidas por crimes de violência sexual em Foca”, conta Kaloper. “Temos três julgamentos em andamento. Já passou muito tempo, e as testemunhas estão esgotadas.”
Segundo o Conselho Superior de Magistrados, 258 casos e mais de 2 mil suspeitos ainda aguardam julgamento. Desde o fim da guerra, a Bósnia condenou 773 pessoas por crimes de guerra, sendo mais de um quarto desses casos relacionados à violência sexual. A OSCE alerta para a lentidão dos processos.
O que nos mata é a duração excessiva desses julgamentos”, desabafa Kaloper à AFP.
Um dos poucos avanços foi a aprovação de uma lei que garante pensão mensal de 175 a 350 euros (R$ 1.175 a R$ 2.350) às vítimas civis da guerra. No entanto, a norma só vale para os sobreviventes que vivem na Federação Croata-Muçulmana da Bósnia, deixando de fora aqueles que residem na República Sérvia e no distrito de Brcko, onde há outros sistemas judiciais.